Budismo: Religião, Psicologia ou Filosofia?
O Budismo é religião, pois nos "religa" à verdadeira essência da mente. É filosofia, pois nos propõe vários temas os quais devemos contemplar em nossas vidas. É psicologia, pois busca compreender como a mente funciona para torna-la saudável. Entretanto, é tudo isso e é ainda mais do que isso, porque o objetivo do Budismo só pode ser compreendido quando experimentado sem fé incontestável, mas também sem apego a reflexões. Nas próprias palavras do Buda: "[...] é profundo, difícil de ver e difícil de compreender, pacífico e sublime, que não pode ser alcançado através do mero raciocínio, sutil, para ser experimentado pelos sábios." - (retirado de Ariyapariyesana Sutta - acessoaoinsight)
Não há dúvida de que o Budismo é aceito como uma religião, afinal, os Cientistas das Religiões - estudiosos mais qualificados no estudo de todas as religiões se comparados aos Teólogos - o encaixam no grupo das 13 doutrinas consideradas religiosas. Apesar disso, muitas pessoas preferem afirmar que seguem não uma religião, mas uma Filosofia de Vida, visto que o Budismo não requer a crença num Deus. Alguns preferem ainda dizer que o Budismo é uma Psicologia, uma Ciência da Mente.
Todas essas definições são, até certo ponto, corretas. Por outro lado, não são tão corretas assim. Vamos entender o porquê.
Religião é uma palavra que vem do latim "religare", que significa "religar", se reconciliar com alguma coisa, recuperar uma antiga ligação. Atualmente, vemos religião como um conjunto de doutrinas e dogmas aos quais prestamos devoção e praticamos com o objetivo de nos religarmos a alguma coisa, na maioria das vezes, a um ser maior. O Budismo de certa forma se encaixa nessa definição: se você for a um Templo Budista, encontrará muitos discípulos prestando devoção ao fazerem prostrações.
Budista fazendo prostração diante do Buda.
Além disso, nós acreditamos, até certo ponto, no Nirvana (o objetivo do Budismo que consiste no fim do sofrimento e na realização da Paz Imortal) - se não, por que praticaríamos? Entretanto, essa não é uma fé cega - à medida que praticamos, percebemos cada vez mais o que é estar em paz, contente e desapegado, e com isso a fé no Nirvana vai crescendo, mas ela não é absoluta, cresce gradualmente. É preciso que acreditemos, no decorrer da prática, que esses ensinamentos podem nos levar a alguma coisa, caso contrário não nos sentimos encorajados.
Numa conversa com um dos seus monges mais eminentes, Sariputta, o Buda o questiona, perguntando se ele acreditava que o desenvolvimento da meditação tinha o Imortal como destino, o Nirvana. Sariputta, que havia alcançado esse estado, respondeu que aqueles que não realizaram a prática só poderiam acreditar nisso com base na fé, ao passo que aqueles que praticaram completamente sabem por si mesmos que o desenvolvimento de atos virtuosos e da meditação conduz ao Nirvana (leia o Pubbakotthaka Sutta no acessoaoinsight). O Buda o elogiou.
Portanto, no Budismo há uma série de ensinamentos que, até certo ponto, requerem fé - mas não é uma fé cega, e isso difere o Budismo de outras religiões. Também há rituais que, de acordo com o dicionário Aurélio, consiste em cerimônias - uma delas é a prostração, e ela é muito importante porque nos ajuda a reduzir o nosso Ego e a nos tornar receptivos aos ensinamentos de Buda, que buscam nos religar ao estado natural da mente: um estado de serenidade e paz que está nublado por sentimentos egocêntricos. Um monge tibetano disse, certa vez, que a mente é como um diamante reluzente cujo brilho não enxergamos porque o cobrimos com o pó da ganância e ignorância.
Logo, o Budismo é uma religião, todavia seus rituais requerem uma fé que não é cega, mas desenvolvida no decorrer da prática e que nos encoraja a nos religarmos com nossa natureza. Se quiser entender melhor o conceito de fé no Budismo, leia: O equilíbrio entre a fé e a investigação no Budismo.
Como você deve ter percebido, o Budismo é uma religião que exige equilíbrio, não convicções e fés arraigadas - ela requer que você experimente praticar os ensinamentos de Buda e, com isso, sua fé vai crescendo, mas ela não pode ser incontestável, ela deve estar aberta aos fenômenos que são experimentados. Portanto, o Budismo é uma religião sóbria que apenas disponibiliza algumas práticas para nos desenvolvermos, em que o ato de crer se eleva simultaneamente - não pode haver uma fé fundamentalista. Entretanto, importantíssimo ressaltar que, em divergência com outras religiões, o Budismo não possui dogmas. Dogma, de acordo com o dicionário Aurélio, é um conceito incontestável numa religião que não pode ser discutido, mas definitivamente aceito. Isso não pode existir de forma alguma no Budismo. O Dalai Lama observou certa vez numa palestra em que estavam cientistas e psicólogos que, se a Ciência descobrir alguma doutrina errada no Budismo, então ela deve ser abandonada, pois o ensinamento de Buda foi claro: devemos colocar seus ensinamentos à prova e vermos por nós mesmos se aquilo é válido ou descartável. Nesse quesito, o Budismo não se encaixa na definição de Religião.
(Buda): "Não se deixem levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, 'este contemplativo é o nosso mestre'. Quando vocês souberem por vocês mesmos que, 'essas qualidades são hábeis; essas qualidades são isentas de culpa; essas qualidades são elogiadas pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao bem e à felicidade' - só então vocês devem entrar e permanecer nelas". - (retirado de Kalama Sutta - acessoaoinsight)
Portanto, toda a fé e rituais de prostração e silêncio requeridos pelo Budismo são práticas que servem para auxiliar no desenvolvimento da mente, e aqui entra o conceito de Psicologia. Na atualidade, muitos terapeutas têm aplicado a Meditação em suas sessões, conseguindo ótimos resultados com os seus pacientes. O Zen Budismo também tem sido o tema central de muitas monografias em cursos de Psicologia. Por que isso? Justamente porque, como falamos, todas as práticas budistas têm como objetivo o desenvolvimento da mente.
É perceptível que aqueles que interagem com os ensinamentos budistas aprendem a estar mais contentes, satisfeitos, felizes e a reduzir a raiva, tornando-se mais pacientes. Entretanto, o objetivo disso seria o de apenas servir como uma terapia? Afinal, a Psicologia existe com o intuito de tornar a vida das pessoas mais satisfatória e agradável - esse é o objetivo de Buda?
Apesar de muitos poderem praticar o Budismo para serem menos ansiosos e terem uma vida melhor, o objetivo último do Budismo é ir além disso: é reduzir a clientela dos Psicólogos. Traduzindo a piada: os ensinamentos de Buda têm como meta acabar com o sofrimento, libertar-se dele definitivamente através da sua compreensão. Logo, aquele que alcança Nirvana não precisa de Terapia - porque ele deu um fim a sua Insatisfação e compreendeu o sofrimento, conseguindo estar livre dele. Assim sendo, o Budismo é uma Psicologia no sentido de que melhora os funcionamentos da Mente e suas emoções, mas seu objetivo vai além de uma terapia psicológica. Seu objetivo é compreender o sofrimento para silenciá-lo, bem como ressaltou a monja theravada Ayya Khema:
(Ayya Khema): "Algumas pessoas consideram os ensinamentos como um tipo de terapia, o que sem dúvida é correto, mas esse não é o objetivo último, apenas um dos seus aspectos secundários. Os ensinamentos do Buda conduzem ao fim do sofrimento, de uma vez por todas, não apenas por um instante quando as coisas não vão bem." - (retirado de Não dualidade - acessoaoinsight)
E, por fim, para compreender o Budismo, precisamos refletir sobre ele variadas vezes: aqui entramos no conceito de Filosofia. Do grego "Amor à Sabedoria", Filosofia geralmente é taxada como a arte da reflexão e do pensamento, em que o filósofo questiona tudo a sua volta para compreender melhor a natureza e a existência humana. Sem dúvida alguma o Buda proferiu vários conselhos que ele mesmo pediu que questionássemos e contemplássemos para tentarmos entender como o sofrimento surge e, em seguida, cessa, como podemos alcançar a paz e estarmos felizes. Entretanto, como você pode rever no trecho citado no subtítulo, o Nirvana ensinado por Buda não pode ser "alcançado através do mero raciocínio", ou seja, não adianta você ouvir "é assim que se realiza o Nirvana" e ficar refletindo sobre isso o resto da sua vida: você nunca irá realizar a Paz Suprema apenas pensando. Nossos pensamentos podem nos ajudar a entender os fenômenos de nossas mentes até certo ponto, mas para nos aprofundarmos em nossas compreensões e penetrarmos as experiências temos que, literalmente, experimentá-las, simplesmente experimentá-las sem conceitua-las ou defini-las: ou seja, numa perspectiva profunda, os pensamentos e reflexões não são úteis, mas um bloqueio.
Os pensamentos são úteis até certo ponto no decorrer de toda a prática, mas há uma etapa em que largamos nossas opiniões e apenas observamos os fenômenos, sem pensar em absolutamente nada. Isso é Jhana, meditação profunda, em que a mente é 'experienciada' profundamente num silêncio absoluto, em que não conseguimos pensar porque estamos profundamente atentos à experiência. Nesse momento, que requer anos de prática para ser alcançado, não há filosofar algum.
Portanto, o Budismo nos religa a uma mente calma e mais feliz, mas para isso não basta um pouco de fé, há que se ter reflexão. Só que essa reflexão deve ser usada para melhorar a Meditação, mas não interferir em seu processo - não podemos ficar refletindo durante uma prática que busca silenciar a mente: a reflexão é usada para chegar ao silêncio e ao desapego, da mesma forma que um automóvel é usado para chegar ao mercado - você não vai levar o carro para dentro.
Então, os ensinamentos de Buda são religião, são psicologia, são filosofia mas também são mais do que isso: são uma forma de penetrarmos os fenômenos da mente e do universo profundamente, percebê-los em sua pureza e realmente entende-los. Isso é, no conceito budista um pouco diferente do filosófico, o que é Sabedoria.
Assim, podemos perceber que os conceitos de Fé, Felicidade e Sabedoria no Budismo diferem um pouco das definições apresentadas pela Religião, Psicologia e Filosofia respectivamente. Até certo ponto, tais palavras podem descrever o Budismo, mas no final das contas Buda nos orientou para uma experiência em que definição alguma pode chegar, para um silêncio em que nenhum conceito é utilizado, mas em que o mundo é percebido totalmente. Ou às vezes não, pois o nome dado por Buda para o último Jhana, o mais profundo, foi: nem percepção nem não percepção. Curioso? É algo sobre o qual não podemos discutir, para o qual não podemos alimentar fé cega e que não tem apenas o objetivo de tornar nossas vidas melhores. É algo que precisamos conhecer na prática por nós mesmos, não através da mera discussão filosófica ou crença incontestável.
Assim sendo, o Budismo é Religião, é Filosofia, é Psicologia e é mais do que isso. A fé, a reflexão e o contentamento são requisitos usados para alcançar o Nirvana. Mas, em sua última 'definição', o Nirvana é o Incondicionado, algo que não pode ser definido pela linguagem mundana. Quando se alcança a Paz Suprema, as coisas usadas para alcança-la vão sendo deixadas, e assim experimentamos os fenômenos em sua pureza, sem conceito ou fé alguma, apenas compreendendo e penetrando. O Buda ilustrou esse abandonar com a Analogia de um Barco. Ele diz que é como se o Barco fosse o seu Dharma, seus ensinamentos. Alguém usa esse barco para atravessar à outra margem, ou seja, para sair da margem da ignorância e sofrimento para a margem da sabedoria e paz, e, quando chega lá, a pessoa não carregará o barco em terra firme, certo? Ele deixará o barco na margem e entrará nas terras da Paz Suprema. Portanto, religião, filosofia e psicologia são usados no decorrer da prática. Rituais, prostrações, reflexões, contemplações e recondicionamentos da mente são utilizados para alcançar a Paz Suprema, mas essa, por si só, não pode ser definida ou conceituada. Conceitos são para serem utilizados para alcançar algo indescritível. Então, não se apegue a palavras - Buda disse que se apegar traz sofrimento. Não tente encontrar uma definição para o Budismo porque o objetivo deste é o indefinível. Mesmo a palavra Nirvana limita o que de fato o Buda propôs que alcançássemos.
"As palavras são como um dedo apontando para a Lua; cuida de saber olhar para a Lua, não se preocupe com o dedo que a aponta." - Ditado Zen-Budista
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